Kerolzinha
Certa vez, criei, junto com alguns amigos, um dicionário de palavras inventadas. Sem descrições, só pela sonoridade, pelo prazer de saborear a lalangue, como diria Lacan. E do dicionário retirei algumas palavras para escrever o texto que se segue. E, mesmo cheio de palavras inventadas, é absoluatemente compreensível, como vcs verão. =)

Sus-surro, rei dos cunhãs

Sempre fui fascinado pela história de Sus-surro. Diz na Amafa, que Ele é o filho de Zyafo e que foi enviado à Tutukaneron no ano zero para salvar os cunhãs. Hoje, em 5073, poucos cunhãs ainda dão credibilidade a essa história e são raros os trechos que ainda existem da Amafa. Ninguém conhece a história por completo.
Mas eu nunca deixei de acreditar e de buscar provas concretas para que a fé em Sus-surro voltasse a habitar o coração dos cunhãs.

Quando fiquei sabendo da invenção da maquina Kalitsutoara, que permite viagens pelo tempo, senti que ali estava a chance de realizar meu sonho.
No momento em que estava com todos aqueles fios grudados no meu corpo, um fiozinho de medo percorreu-me. Voltaria ao ano de 30, ano em que Sus-ssurro começou a sua pregação na Tutukaneron. O sistema já fora programado: estaria vestido com roupas e sandálias peculiares à época, barba e cabelos longos. O que me causava medo era o fato de que eu estaria lá sem saber qual seria a minha missão. Por uma falha no sistema da Kalitsutoara, todos os cunhãs que se aventuravam em suas possibilidades não eram capazes de recordar o motivo da viagem. Mesmo assim fui. Meu pai, o cientista Depoisnéle, ficaria acompanhando e monitorando tudo. Ele também acreditava fielmente na historia de Sus-surro, o Filho de Zyafo.

Quando cheguei, a sensação que tive era a de estar numa “fotografia” (um tipo de registro imagético antigo, que precedeu o plocatefólico). As habitações não flutuavam, pareciam estar presas no chão, num total desperdício de espaço físico. Um pó marrom preenchia o chão (pelo que me lembro chamavam aquilo de terra) e a cada passo saltavam de baixo para cima causando irritação nos olhos e nariz.
Eu não conseguia entender por que diabos eu estava num lugar daqueles.
Caminhando, acabei chegando em um rio onde alguns cunhãs eram empurrados dentro da água por um macho. Mesmo sem entender muito bem o que significava aquele ritual, resolvi sentir a água molhando meu corpo por inteiro, afinal nunca havia visto tanta água assim. Sem que eu tivesse tempo de me defender, o macho se aproximou de mim e empurrou minha cabeça dentro d’água. Quando levantei-me, muito assustado, uma pomba assentou-se no meu ombro e percebi que todos olhavam para o céu. E ajoelharam-se diante de mim. Imaginei estar em um lugar onde os cunhãs sofriam de gustrobiliógipo, que eles chamavam de “loucura” naquela época.

Depois de horas caminhando, avistei uma casa onde vários cunhãs choravam por uma fêmea e diziam que ela estaria com “febre” (é como eles chamavam a putstela simples). Aproximei, inclinei-me sobre ela e ao sentir o odor que saia de sua boca, percebi imediatamente que se tratava de verneilenídios. Lembrei que meu pai havia colocado no bolso da minha vestimenta, um vidrinho de bié (mistura capaz de curar todas as simples patologias). Molhei o dedo com apenas uma gotinha e encostei na testa da fêmea. Minutos depois ela já estava bem. Todos me olharam assustados e uma outra fêmea gritou: “Tu és o Filho de Zyafo”. Senti vontade de sorrir, mas contive-me diante de tamanha blasfêmia.
Quando souberam que eu havia curado aquela fêmea, milhares de cunhãs começaram a me seguir, trazendo enfermos que precisavam de ajuda. Ainda bem que bastava tão pouco de bié para curar aquelas doenças simples e já há muito erradicadas.

Percebendo que era seguido por tantos cunhãs, resolvi fazer um grande favor a cunhanidade: ensinar para aqueles o que havia aprendido nos trechos da Amafa, proclamar as palavras de Zyafo como fizera Sus-surro. Eles já me julgavam um filho de Zyafo, não custava reproduzir as palavras de Sus-surro. E não deixei mais de pregar, imaginando que essa atitude de certa forma mudaria o futuro de onde eu vim.

Com tanta gente me seguindo e proclamando que eu era o filho de Zyafo, passei a incomodar pesadamente os governadores daquele lugar.
Algum tempo depois, fui condenado à morte. Não reagi, afinal aquela era a única forma de voltar ao meu presente. Na programação da Kalitsutoara, ao fazer uma viagem pelo tempo, era necessário morrer para voltar ao presente sem trazer vestígios da época visitada. Eu só não achava que aquele era o momento certo. Eu ainda tinha tantas coisas para ensinar e aquelas pessoas ali me ouviam. Meu pai devia estar orgulhoso e também revoltado por saber que eu teria que abandonar aquela tarefa que eu havia escolhido naquele lugar.

Depois de quase me esfolarem vivo, me fizeram carregar uma cruz pesada até um lugar chamado de Calárvio. Me pregaram na cruz com uns objetos pequenos feitos de ferro e colocaram uma placa acima da minha cabeça. Quando já estava quase falecendo, olhei para cima para tentar ler o que estava escrito na placa. E pude ler: “Sus-surro, rei dos cunhãs”. Triste com aquela blasfêmia que eu mesmo havia causado, só pude olhar para os céus e dizer ao meu pai que me esperava do lado de lá: “Perdoe-os Pai, pois não sabem o que fazem”.

Fonte da imagem: http://www.allied.com.br/manoelcosta/Desenhos/cristo-cruzg.jpg

1 Response
  1. Lindsay Says:

    Gostei muito do seu blog. Esse post é ótimo, adorei o seu texto. Esse olhar imparcial do narrador quase ingênuo é incredible. Ótima transformação de uma história real em ficção. Congrats!


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