Kerolzinha
Num orgasmo de lirismo, sinto o gosto agudo da imaginação.
O cheiro é cinzento, com sabor rosado, nos pedaços novos um pouco azulado, e move-se como lama, vagarosamente. Às vezes torna-se rígido e me fere, chocando-se comigo. Aí então sou caco de vidro no chão. Estrela onírica.
Perco a consciência e encontro maior serenidade na alucinação. Como se visse alguém bebendo água e descobrisse que tinha sede. Sede profunda e velha.
De longe tenho todas as coisas.

Salvador Dali, Galatea of the Spheres

Kerolzinha
Pedi o café sem pressa. Mochaccino, pra não perder o costume.

O tempo é meu companheiro inseparável. Sentado ao meu lado, eu o via escorrer na umidade do vapor. Entre os grãos de coffea arábica e o leite vaporizado, eu podia vislumbrar seu sorriso perverso. Seu canto batuca na minha boca todos os dias, como detalhes que caçoam da minha rotina.

O café ficou acre. Mochaccino com chocolate amargo? Forte demais para um momento cheio de tantos poucos.

Nunca fui dada a coisas muitas, excessivas. Queria o assaz companheirismo dos restos atemporais. Não por acaso pintava corriqueiramente as unhas de vermelho por rosa choque. Mas nunca me colori em vão.

De dentro via as flores da vitrine de fora. E o café, com mais açúcar, me lembrou o desembaralhar dos dias como cartas sobrepostas na mesa. Como o tempo, sentado ao meu lado. Do supérfluo já fui versada em letras monumentais. Sem cores, sem prazer.

E o café, Mochaccino, sobre a mesa, esfriou devagar.



Kerolzinha
Acho que só me restou esse velho e saudoso método para tentar alguma comunicação com você, já que seus dotes não são muito afins com o mundo digital e sua presença é ausência quando tento te capturar pelo telefone. Então vamos de volta ao começo.

E será que te escrever é uma forma de tentar resgatar algo que encontramos no começo, se depurou no caminho e quase sumiu na urgência contemporânea? Onde – exatamente – perdemos o fio da meada de tanta cumplicidade e necessidade de compartilhar vazios? E tudo o que eu queria era ter uma máquina de datilografar, daquelas que quanto mais antiga mais pesada, na qual eu pudesse tocar de maneira tão abrupta e penosa que o próprio processo da escrita se transformaria no desgaste da saudade e das necessidades sublimadas. Oh, metade afastada de mim, leva o teu olhar que a saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento...

Ou seria somente falta de amor-próprio te buscar como um pedaço que se dissipou? Diante do tamanho singular da ausência, dos silêncios que você plantou e colheu entre o que éramos e o que nos tornamos, talvez eu não seja mais dotada de amor-próprio mesmo. Mas estou inundada de amor-próximo. De amor-nosso, de amor-seu. Amor à você. Que não deixa calar o murmurinho da saudade, da vontade de remendar retalhos do que sobrou, do que os seus sigilos não conseguem diluir. Oh, pedaço de mim, leva o que há de ti que a saudade dói latejada. É assim como uma fisgada no membro que já perdi...

Será que ainda seríamos capazes de navegar nos olhares, de nos transmutarmos na aura doce e dolorida e deliciosa do outro? Como tantas vezes o fomos. Você é a melhor e mais sólida lembrança de um encontro de mim comigo mesma, de um deixar de me pertencer para habitar os seus desígnios, já que neles, prazerosamente, eu jazia. E onde foi, nesse longo caminho, que deixamos escapulir o deleite de nos reconhecermos no outro? E porque deixou lastros indizíveis a preencher a ânsia do meu vazio? Oh, metade exilada de mim, leva os teus sinais que a saudade dói como um barco, que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais...

Então, eu queria ter palavras que desgastassem a linguagem ao ponto de te transmitir todo o não-sentido, todo o vazio que ficou e que não tendo suas multidões para preenchê-lo, segue indigente de sua compreensão, de sua presença morna e sulfúrica. E será que ainda gostamos do ouvido do outro? Será que o que ouço ainda te seqüestrará? Acredito seguramente que sim. E talvez aqui esteja o vislumbre do caminho da volta, o remendo do fio da meada. Compartilho com você o que batuca no meu oco e múltiplo sentimento, pra te dizer que o seu lugar está te esperando voltar. Oh, metade adorada de mim, leva os olhos meus que a saudade é o pior castigo e eu não quero levar comigo a mortalha do amor. Adeus...


Kerolzinha
Certa vez, criei, junto com alguns amigos, um dicionário de palavras inventadas. Sem descrições, só pela sonoridade, pelo prazer de saborear a lalangue, como diria Lacan. E do dicionário retirei algumas palavras para escrever o texto que se segue. E, mesmo cheio de palavras inventadas, é absoluatemente compreensível, como vcs verão. =)

Sus-surro, rei dos cunhãs

Sempre fui fascinado pela história de Sus-surro. Diz na Amafa, que Ele é o filho de Zyafo e que foi enviado à Tutukaneron no ano zero para salvar os cunhãs. Hoje, em 5073, poucos cunhãs ainda dão credibilidade a essa história e são raros os trechos que ainda existem da Amafa. Ninguém conhece a história por completo.
Mas eu nunca deixei de acreditar e de buscar provas concretas para que a fé em Sus-surro voltasse a habitar o coração dos cunhãs.

Quando fiquei sabendo da invenção da maquina Kalitsutoara, que permite viagens pelo tempo, senti que ali estava a chance de realizar meu sonho.
No momento em que estava com todos aqueles fios grudados no meu corpo, um fiozinho de medo percorreu-me. Voltaria ao ano de 30, ano em que Sus-ssurro começou a sua pregação na Tutukaneron. O sistema já fora programado: estaria vestido com roupas e sandálias peculiares à época, barba e cabelos longos. O que me causava medo era o fato de que eu estaria lá sem saber qual seria a minha missão. Por uma falha no sistema da Kalitsutoara, todos os cunhãs que se aventuravam em suas possibilidades não eram capazes de recordar o motivo da viagem. Mesmo assim fui. Meu pai, o cientista Depoisnéle, ficaria acompanhando e monitorando tudo. Ele também acreditava fielmente na historia de Sus-surro, o Filho de Zyafo.

Quando cheguei, a sensação que tive era a de estar numa “fotografia” (um tipo de registro imagético antigo, que precedeu o plocatefólico). As habitações não flutuavam, pareciam estar presas no chão, num total desperdício de espaço físico. Um pó marrom preenchia o chão (pelo que me lembro chamavam aquilo de terra) e a cada passo saltavam de baixo para cima causando irritação nos olhos e nariz.
Eu não conseguia entender por que diabos eu estava num lugar daqueles.
Caminhando, acabei chegando em um rio onde alguns cunhãs eram empurrados dentro da água por um macho. Mesmo sem entender muito bem o que significava aquele ritual, resolvi sentir a água molhando meu corpo por inteiro, afinal nunca havia visto tanta água assim. Sem que eu tivesse tempo de me defender, o macho se aproximou de mim e empurrou minha cabeça dentro d’água. Quando levantei-me, muito assustado, uma pomba assentou-se no meu ombro e percebi que todos olhavam para o céu. E ajoelharam-se diante de mim. Imaginei estar em um lugar onde os cunhãs sofriam de gustrobiliógipo, que eles chamavam de “loucura” naquela época.

Depois de horas caminhando, avistei uma casa onde vários cunhãs choravam por uma fêmea e diziam que ela estaria com “febre” (é como eles chamavam a putstela simples). Aproximei, inclinei-me sobre ela e ao sentir o odor que saia de sua boca, percebi imediatamente que se tratava de verneilenídios. Lembrei que meu pai havia colocado no bolso da minha vestimenta, um vidrinho de bié (mistura capaz de curar todas as simples patologias). Molhei o dedo com apenas uma gotinha e encostei na testa da fêmea. Minutos depois ela já estava bem. Todos me olharam assustados e uma outra fêmea gritou: “Tu és o Filho de Zyafo”. Senti vontade de sorrir, mas contive-me diante de tamanha blasfêmia.
Quando souberam que eu havia curado aquela fêmea, milhares de cunhãs começaram a me seguir, trazendo enfermos que precisavam de ajuda. Ainda bem que bastava tão pouco de bié para curar aquelas doenças simples e já há muito erradicadas.

Percebendo que era seguido por tantos cunhãs, resolvi fazer um grande favor a cunhanidade: ensinar para aqueles o que havia aprendido nos trechos da Amafa, proclamar as palavras de Zyafo como fizera Sus-surro. Eles já me julgavam um filho de Zyafo, não custava reproduzir as palavras de Sus-surro. E não deixei mais de pregar, imaginando que essa atitude de certa forma mudaria o futuro de onde eu vim.

Com tanta gente me seguindo e proclamando que eu era o filho de Zyafo, passei a incomodar pesadamente os governadores daquele lugar.
Algum tempo depois, fui condenado à morte. Não reagi, afinal aquela era a única forma de voltar ao meu presente. Na programação da Kalitsutoara, ao fazer uma viagem pelo tempo, era necessário morrer para voltar ao presente sem trazer vestígios da época visitada. Eu só não achava que aquele era o momento certo. Eu ainda tinha tantas coisas para ensinar e aquelas pessoas ali me ouviam. Meu pai devia estar orgulhoso e também revoltado por saber que eu teria que abandonar aquela tarefa que eu havia escolhido naquele lugar.

Depois de quase me esfolarem vivo, me fizeram carregar uma cruz pesada até um lugar chamado de Calárvio. Me pregaram na cruz com uns objetos pequenos feitos de ferro e colocaram uma placa acima da minha cabeça. Quando já estava quase falecendo, olhei para cima para tentar ler o que estava escrito na placa. E pude ler: “Sus-surro, rei dos cunhãs”. Triste com aquela blasfêmia que eu mesmo havia causado, só pude olhar para os céus e dizer ao meu pai que me esperava do lado de lá: “Perdoe-os Pai, pois não sabem o que fazem”.

Fonte da imagem: http://www.allied.com.br/manoelcosta/Desenhos/cristo-cruzg.jpg

Kerolzinha
Sempre amei literatura e ler e escrever. Desde que aprendi a cozinhar minha criatividade se aguçou. Invento na cozinha. Reinvento as palavras.

E ficava a inquietação: como unir uma coisa à outra?

E me lembrei que a palavra SABER veio do SABOR. Compreender um texto é, literalmente, saborear suas palavras, degustar cada idéia veiculada por ele, mastigar suas entrelinhas.

Então é isso: esse blog falará de palavras e de sabores. Das minhas receitas diárias na hora do almoço e das minhas leituras na hora de dormir. Das minhas invencionices na cozinha e no papel. Das letras que amo e daquilo que devoro.

Sejam bem vindos!